O desafio da transição energética para as redes públicas de ônibus

Transição energética das redes de transporte: ainda que estejamos apenas no início desta mudança que revolucionará o funcionamento das redes de transporte que conhecemos, esta expressão está em alta. Marc Boudier, Chefe de Estudos do Departamento de Consultoria e Planejamento da SYSTRA FRANÇA, nos dá as chaves para a definição de uma estratégia de transição energética de uma rede de transporte público rodoviário. Quais são as escolhas tecnológicas possíveis? O que está mudando em comparação com a era do petróleo? Existe uma receita que pode ser replicada em diferentes lugares? Como podemos ter domínio acerca do conhecimento sobre as tecnologias “limpas”? Quais são os custos e riscos associados à essa transição?

O Acordo de Paris foi assinado em 2016 por quase 200 países do mundo: o seu objetivo é limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius, mitigando as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e tornando os fluxos financeiros coerentes com esse objetivo.

Mesmo que as medidas não sejam obrigatórias, os países signatários do Acordo de Paris têm de respeitar certos princípios: a estratégia 20/20/20 (reduzir as emissões de dióxido de carbono em 20%, aumentar a produção de energia renovável em 20% e aumentar a eficiência energética em 20%). Estas contribuições são determinadas a nível nacional (CND) sobre emissões de gases de efeito estufa, e representam uma progressão ao longo do tempo.

Os transportes são o segundo sector mais importante para as emissões de GEE, têm de fato um papel chave a desempenhar na implementação bem-sucedida do Acordo de Paris.

CONSIDERAR AS NECESSIDADES DE MOBILIDADE NO CONTEXTO LOCAL

A implantação do transporte rodoviário coletivo mais limpo levará a uma melhoria real da qualidade ambiental local (qualidade do ar, poluição sonora etc.), que terá de ser confirmada em nível global ao longo de todo o ciclo ambiental da tecnologia. No entanto, a criação de uma rede de transporte cuja eficiência seria limitada, ou mesmo inadequada em relação às necessidades de mobilidade local, não estaria mais relacionada a energia limpa ou de alta emissão de gases de efeito estufa.

Assim, a transição energética é uma oportunidade para repensar a eficiência das diversas redes de transporte e para implementar as seguintes ações:

Todas estas etapas permitem definir uma rede de transporte público de qualidade: robusta (confiável, resistente a riscos), flexível (permitindo a adaptação da oferta, interoperabilidade, multi-operabilidade da viagem do passageiro para atender às necessidades de todos) e acessível (informação clara, facilidade de acesso, tarifa atraente, modo de transporte adaptado a todos usuários e, em particular, às pessoas com mobilidade reduzida).

Uma vez realizadas estas diferentes ações para consolidar a rede de transporte existente, podemos passar aos próximos passos. Quais tecnologias “limpas” estão disponíveis? E o que muda em relação ao diesel?

REVER AS POSSÍVEIS ESCOLHAS TECNOLÓGICAS

Quando se fala em transição energética de sistemas de transporte rodoviário, a primeira tecnologia que vem à mente é a eletricidade. Há três tipos de tecnologia fundadas no uso de baterias:

  • carga lenta (o veículo é recarregado por várias horas quando não está mais em operação, muitas vezes durante a noite no depósito);
  • carga rápida (o veículo é carregado em poucos minutos, várias vezes durante o dia, muitas vezes em terminais ou às vezes em paradas intermediárias);
  • e o trólebus (ônibus carregado por meio de catenárias; as novas gerações integram pequenas baterias nestes veículos permitindo uma pequena autonomia fora da catenária).

Já difundida em certos distritos da China (Shenzhen, em particular), a tecnologia elétrica à bateria está começando a ser implantada em maior escala na Europa, à medida que as frotas de ônibus são renovadas.

Entretanto, a abordagem “tudo-elétrico” tem seus limites, não apenas em termos de autonomia dos veículos, mas também em termos do balanço ambiental geral. Isso porque outros aspectos também devem ser levados em conta nesse equilíbrio, como o uso de matrizes de energia de baixa emissão e o consumo de metais raros na construção de baterias. Como resultado, as discussões estão agora caminhando para uma transição que inclui uma diversidade de matrizes e fontes de energia.

Na França, a lei sobre transição energética para o crescimento sustentável inclui na definição de veículos limpos os veículos elétricos e movidos a gás, com uma proporção mínima de gás oriundo de fontes renováveis (30% a partir de 2025). Neste contexto, a tecnologia do Gás Natural Veicular (GNV), que é antiga para ônibus, voltou à tona. Ela oferece vantagens em termos de autonomia do veículo e custo. Entretanto, o desafio na utilização desta tecnologia é obter bio-GNV (GNV de origem renovável obtido através da metanização dos resíduos), o que, como veremos, não é tão simples assim.

Outra técnica, ainda em fase de desenvolvimento, mas promissora, baseia-se no uso do hidrogênio (H2) produzido por eletrólise da água. Este método tem um bom balanço ambiental na França, mas demanda uma grande quantidade de energia: dois a três Kwh de eletricidade são necessários para produzir o equivalente de energia de um Kwh de hidrogênio, o que torna essa tecnologia cara.

Finalmente, outras soluções baseadas em fontes de energia mais “exóticas” também estão sendo estudadas e podem se mostrar interessantes em certos territórios. Entre estas, podemos citar o uso de biocombustíveis.

ENTENDER O QUE AS TECNOLOGIAS LIMPAS ESTÃO MUDANDO EM RELAÇÃO AO PETRÓLEO

As redes de ônibus a diesel utilizam uma tecnologia bastante difundida, mas, devido ao uso de combustíveis fósseis, ela não atende mais às normas de emissão de gases de efeito estufa.

Atualmente, com o advento de novas tecnologias de energia, não podemos mais pensar simplesmente “recursos para uma rede de transporte = compra de veículos”. Precisamos mudar nossa visão e pensar em termos de um “sistema”, integrando a infraestrutura e o plano operacional. Um plano operacional deve ser elaborado com base na oferta de transporte definida, tendo em vista um sistema que atende todas as necessidades operacionais. As chamadas tecnologias “limpas” exigem uma mudança na organização e o treinamento de pessoal qualificado.

Para realizar a transição energética de uma rede de ônibus, aqui estão os oito principais critérios a serem considerados, que definirão a preferência por uma determinada tecnologia:

  • Autonomia do veículo;
  • Tempo de reabastecimento do veículo (tempo necessário para abastecer os veículos com energia);
  • Segurança do fornecimento de energia limpa (de baixa emissão ou renovável);
  • Flexibilidade sobre a evolução da oferta de transporte, em especial o itinerário das linhas comerciais;
  • Custos totais de investimento;
  • Custos totais de operação;
  • Equilíbrio ambiental local ao longo de todo o ciclo de vida da tecnologia;
  • Equilíbrio ambiental global ao longo do ciclo de vida da tecnologia.

A tabela abaixo representa a avaliação geral das principais “tecnologias limpas” em relação a estes oito critérios.

Como pode ser visto nesta tabela, não existe uma tecnologia que atenda a todos os critérios avaliados de forma positiva. O primeiro aspecto importante para a escolha de uma tecnologia adequada é a necessidade operacional. Para avaliar como as diferentes tecnologias atendem a essa necessidade, os serviços de ônibus são divididos de acordo com o número de quilômetros diários percorridos e a autonomia necessária associada. Um segundo aspecto é o contexto territorial: de fato, a relevância do uso de uma energia pode ser modulada levando em conta os setores existentes e os projetos locais.

Se uma única tecnologia for escolhida para atender a todas as necessidades, permanecemos em um sistema de energia única. Se não, falamos de energia diversificada.

UTILIZAR POTENCIAIS LOCAIS, DE ACORDO COM A ESTRATÉGIA ENERGÉTICA DO TERRITÓRIO

Uma análise detalhada dos potenciais do território tornará possível orientar a estratégia de transição energética. Pensa-se naturalmente nas redes de distribuição de energia, como as redes de eletricidade e gás, que geralmente possuem boa cobertura em escala nacional em ambientes urbanos.

Entretanto, um território também pode fazer uso de outras fontes de energia, ligadas a atividades locais específicas, que produzem resíduos que podem ser utilizados para a geração de energia. Um exemplo é o uso de bagaço de uva para criar bioetanol, uma solução utilizada nas regiões de vinícolas.

Da mesma forma, os territórios com atividades industriais podem estudar o uso de resíduos de hidrogênio: esta solução é utilizada principalmente na Alemanha e nos Países Baixos para abastecer ônibus de hidrogênio à baixo custo enquanto recuperam um resíduo industrial.

Outra maneira de aproveitar ao máximo os potenciais territoriais é compartilhar as estações de energia. Embora seja difícil usar as mesmas estações de carregamento para veículos leves e ônibus, particularmente por razões de energia e tempo de carga, é fácil compartilhar estações de gás natural, por exemplo.

Para facilitar a implantação desta última tecnologia, a estratégia de transição energética das redes de ônibus pode ser considerada como o início de uma estratégia mais ampla de desenvolvimento da mobilidade limpa dentro do território. Por exemplo, o desenvolvimento de postos públicos de GNV poderia beneficiar a rede de transporte público rodoviário, mas também os particulares e o setor de transporte de carga.

As redes de ônibus movidas a diesel dependem diretamente dos preços diários do petróleo e do fornecimento concentrado em certas regiões do mundo, o que representa um risco significativo para o equilíbrio econômico e a mobilidade. Ao contrário dos combustíveis da indústria petrolífera, algumas energias limpas fortalecem a independência energética dos territórios e permitem a implementação de contratos de fornecimento no médio a longo prazo, garantindo assim o abastecimento e assegurando custos.

Entretanto, como em qualquer desenvolvimento importante de um setor, a transição energética requer conhecimento e controle de riscos específicos.

PREVENIR OS RISCOS ASSOCIADOS À ENERGIA LIMPA

Os riscos associados à transição energética estão intrinsecamente associados às energias limpas selecionadas. Seria ilusório tentar enumerá-los. A tabela abaixo lista os riscos principais e indica os meios de prevenção a serem implementados. Em todos os casos, o objetivo é assegurar a continuidade do serviço da rede de ônibus desde o início da transição, e de forma sustentável para além desse período.

Além da gestão de riscos, qualquer autoridade local que propõe a transição energética de sua rede de ônibus se depara com outro imperativo: controlar os custos desta mudança.

CONTROLAR OS CUSTOS DA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA

Com a redução do financiamento público, controlar os custos da transição energética é uma verdadeira chave para o sucesso. Atualmente, os principais custos operacionais dos veículos a diesel se dividem em três categorias (excluindo-se folha salarial): frota de ônibus, manutenção e combustível. No futuro, com tecnologias limpas, será necessário levar em conta o custo da infraestrutura e a renovação de certos componentes, como a bateria ou a célula de combustível.

O gráfico abaixo compara os custos anuais, em euro, de tecnologias limpas baseadas em hidrogênio (H2), eletricidade de carga lenta, GNV (veículo a gás natural) e biogás, com os custos da tecnologia térmica (diesel).[1]

Este gráfico foi produzido pela modelagem de uma rede urbana de 50 ônibus (sendo metade da frota de ônibus padrão e a outra metade de articulados), cada um cobrindo 60.000 km por ano. Para a infraestrutura, os custos apresentados incluem as instalações de reabastecimento, mas não incluem as obras de engenharia.

Ao comparar tecnologias de energia limpa com diesel, o uso de gás natural para veículos (GNV) é a solução menos onerosa. Isto pode explicar por que várias autoridades locais escolheram esta tecnologia para sua rede de ônibus. No entanto, o GNV continua sendo um combustível fóssil, cuja emissão é apenas 25% menor quando comparado ao diesel.

A solução baseada no bio-GNV (GNV de origem renovável produzido pelo processo de metanização de resíduos) é muito mais ecológica do que o GNV, mas custa três a quatro vezes mais em combustível. Além disso, seu fornecimento pode ser limitado em quantidade. Estima-se que os resíduos de 7.000 pessoas devem ser usados para abastecer um ônibus com bioNGV.

Os custos da tecnologia do hidrogênio continuam altos, atualmente custando o dobro ou o triplo dos combustíveis tradicionais, embora se espere que os custos de manutenção caiam à medida que a frota se expanda para maiores escalas. As reduções de preços a serem esperadas de projetos europeus de compra em massa, como o JIVE (Joint Initiative for Hydrogen Vehicles Accross Europe), foram consideradas na simulação apresentada.

A tecnologia elétrica tem algumas vantagens financeiras em países onde esta fonte de energia é acessível e o fornecimento não sofre com a escassez. Com uma implantação mais ampla, os custos da bateria devem diminuir se as regras do livre mercado ainda forem seguidas. Entretanto, existe o risco de aumentar a dependência de alguns países que dominam a tecnologia de baterias e o acesso a metais raros.

Dependendo do contexto do setor energético nacional e local, algumas soluções serão mais adaptadas a um país do que a outro em relação ao meio ambiente e aos aspectos de custo. No entanto, na maioria dos países do mundo, o petróleo é tributado, gerando receitas substanciais para os governos. Como resultado, cada passo do Diesel para a mobilidade da energia limpa precisará ser considerado na tributação da mobilidade da energia. Qualquer mudança na tributação da energia mudaria a equação econômica.

O artigo original está disponível em francês e em inglês. Clique aqui para acessá-lo.


[1] Custos anuais, em euro, determinados considerando a realidade da França. Os custos são variáveis conforme o contexto local.

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